
Uma Noite Inesquecível
Ouço o trinco da porta girar com um clique suave. Minha respiração pausa. A madeira se abre devagar, deixando um feixe de luz derramar-se pelo quarto. Na penumbra, vejo a silhueta de uma mulher. A luz a desenha com curvas hipnóticas. Algo em sua postura me é familiar, mas a lembrança escapa como um sonho ao despertar. Talvez sejam os remédios.
Ela entra, fechando a porta atrás de si com um gesto silencioso. O quarto mergulha novamente na escuridão. Seu perfume se espalha pelo ar, uma mistura de jasmim e terra molhada, como se eu estivesse em um parque sob uma garoa leve. Meu corpo reconhece antes da mente: desejo.

Ela se aproxima devagar. Sinto o peso dela sobre mim quando monta em meu colo, pressionando seu quadril contra o meu, deslizando de um jeito que faz o ar sumir dos meus pulmões. Sua boca roça meu ouvido, e o sussurro que se segue é uma corrente elétrica na espinha:
— Quero você.
Não respondo. Não preciso. Minhas mãos exploram sua pele quente, percorrendo até chegar em sua cintura, deslizam até seus seios. Os lábios dela encontram os meus, e seu sabor é doce e intenso. Ela desce a mão entre nós, guiando-me para dentro de si, e quando me envolve, um gemido rouco escapa de sua garganta.
Ela cavalga devagar no início, como se quisesse sentir cada centímetro. Depois, aumenta o ritmo, com mais fome, mais urgência. Seu corpo se encaixa no meu de um jeito que parece inevitável. Seus dedos se cravam nos meus ombros, unhas arranhando minha pele. Então, sem aviso, ela me dá um tapa no rosto. O choque é um segundo de confusão antes de se transformar em algo mais profundo, mais visceral.
— Você gosta disso? — ela pergunta, a voz carregada de luxúria.
— Sim. Gosto.
Ela sorri, acelera, geme mais alto. Sinto suas contrações, sua respiração acelerada, o clímax tomando conta dela e me arrastando junto. Explodimos juntos, suados, ofegantes. A escuridão nos engole. Adormeço com o cheiro dela grudado em mim.
Acordo com batidas na porta.
— Hora do café da manhã.
O enfermeiro.
Pisco algumas vezes, tentando me situar. Meus músculos ainda carregam a lembrança da noite. Meus dedos deslizam pelo peito e encontram marcas. Cortes finos. Arranhões. Me levanto devagar e vou até o banheiro. O espelho reflete uma versão de mim que não sei se é real.
Meu peito está marcado. Meus lábios estão um pouco inchados. O queixo tem um arranhão fino.
Respiro fundo.
Volto para o quarto e, de repente, o perfume toma conta de mim outra vez. O mesmo cheiro de jasmim e terra molhada. Um arrepio sobe pela minha nuca.
Flashbacks me atingem como lâminas afiadas: seu corpo sobre o meu, sua boca, seus gemidos. A intensidade, o prazer, o tapa. Foi real?
Saio do quarto ainda zonzo, me juntando à fila dos medicamentos. Na minha frente, Eduardo, um colega de internação me encara com um sorriso de canto.
— E aí, como foi sua noite?
Abro a boca, mas hesito.
— Eu não sei.
— Como assim?
Solto o ar, passo a mão pelos cabelos, tentando organizar os pensamentos.
— Você sabe por que estou internado.
Ele assente devagar.
— Sei. Você tem alucinações. Nunca sabe o que é real ou ilusão.
Balanço a cabeça.
— Exatamente. Então… não sei como foi minha noite. Mas as memórias que tenho são maravilhosas.
Sorrio, um sorriso pequeno, de canto, carregado de um desejo silencioso. No fundo, tudo que quero é que tenha sido real.
Mas como saberei disso?
O Vazio
Tomo café, sigo a rotina da instituição, participo das atividades programadas, almoço, mais atividades… A tarde chega, estamos assistindo a algo na sala comum, mas nada faz sentido. Tudo passa por mim sem deixar rastros. Meu corpo está ali, mas minha mente está em outro lugar, vagando na incerteza da noite passada.
Ouço uma voz distante, cortando o véu da minha distração.
— Arthur… Arthur… Hey! Arthur.
Pisco. O mundo volta a existir.
— Oi, Eduardo.
— Velho, você tá muito distante. Quer falar sobre isso?
— Não. Melhor não.
— Mas se quiser, estou aqui. Você sabe disso.
— Sei, sim. Você é um ótimo amigo.
— Que bom que você falou isso, porque tenho um convite pra te fazer — ele diz com um brilho nos olhos. — Vou apresentar meu monólogo no Festival de Talentos, sábado, às 20h, e não aceito um “não” como resposta.
Seu entusiasmo é genuíno, e é impossível não perceber o quanto minha presença significa para ele. Depois de tudo que passou, todo abandono que enfrentou, sou a pessoa mais próxima que ele tem.
— Claro que eu vou. Estarei lá às 19h30. Não perco isso por nada.
— Ótimo, assim espero.
A semana passa rápido, mas minha mente se prende a um único pensamento: encontrar qualquer evidência de que aquela noite foi real. Se foi, quem era aquela mulher?
Uma voz distante me chama de novo.
— Arthur.
Dessa vez, é o meu psiquiatra.

— Percebi que algo tem te incomodado. Gostaria de conversar sobre isso?
— Sim, doutor.
E então conto tudo. Cada detalhe, enquanto ele escuta em silêncio, tomando notas com calma.
— Você tem alguma prova concreta de que suas memórias são reais?
— O perfume… Pela manhã, ele parecia tão vívido, assim como os arranhões.
Ele me observa por um momento antes de perguntar:
— Já pensou na possibilidade de você ter feito esses arranhões em si mesmo?
— Sim… Algumas vezes. Mas evito pensar nisso. Prefiro acreditar que foi real.
— Entendo. Mas preste atenção no que vou lhe dizer. Primeiro, é quase impossível que uma mulher tenha saído da ala feminina para a masculina sem ser notada. Isso só acontece em eventos ou festivais, pois é estritamente proibido.
— Sei disso.
— Segundo, essa dúvida parece estar te afetando mais do que deveria. Talvez esquecer esse episódio por um tempo seja o melhor. Se aconteceu, foi um momento bom, mas já passou. Se não aconteceu… então sua mente criou uma lembrança prazerosa.
Suas palavras fazem sentido. Respiro fundo. Talvez seja isso mesmo. Decido esquecer e seguir em frente.
Festival de Talentos
O sábado chega rápido. Estou no meio de um sonho qualquer quando Eduardo invade meu quarto e pula sobre mim.
— Acorda, vagabundo! Isso é hora de estar dormindo?
— Uhhmm… Me deixa em paz… Hoje é sábado.
— Exatamente! Você precisa se preparar para a minha apresentação magnífica!
E assim passa o dia. Eduardo não desgruda de mim, ensaiando falas, repetindo gestos, perguntando se está bom. Seu entusiasmo é contagiante. Gosto disso nele. Gosto dessa energia. Me faz bem. Eu estou ali, minha mente está ali. Sorriu a cada coisa engraçada dele. Estou me divertindo. Assim foi o dia todo.

Às 19h30, já estou pronto. Escolhi uma roupa à altura da ocasião. Estou sentado perto do palco, mas, ao se aproximar para sentar, um desastrado derrama refrigerante na minha camisa.
— Droga…
Levanto e vou ao quarto trocá-la.
Entro resmungando, tentando secar o tecido quando o cheiro me atinge.
Paro.
Congelo.
Aquele perfume.
O mesmo perfume.
Aquele aroma que prometi esquecer.
Meu coração dispara.
— Não, não, não… NÃO!
Viro para a cama. Há algo lá. Um papel.
Me aproximo, hesitante. Meus dedos tremem quando o toco. O bilhete está perfumado com o mesmo perfume daquela mulher misteriosa.
Leio.
“Te espero às 20h, no refeitório. Entre, feche a porta e não acenda a luz.”
O ar some dos meus pulmões. Meus olhos percorrem a frase mais uma vez, como se pudessem extrair alguma certeza dali.
Real ou delírio?
Olho pro relógio, faltam 5 minutos.
Agora eu preciso descobrir.
A Recaída
Saio apressado em direção ao refeitório, com uma mistura de ansiedade e alívio. Finalmente, terei a resposta para minha inquietude. Paro diante da porta, olho para o relógio. Os segundos avançam para o topo.
Hesito, decido.
Viro a maçaneta, encontro a porta destrancada. O cômodo está mergulhado em penumbra, iluminado apenas pelos filetes de luz que entram pelas janelas superiores. Entro em silêncio e fecho a porta atrás de mim. Minha mão toca o interruptor, mas hesito. As palavras no bilhete ecoam em minha mente:
“Entre, feche a porta e não acenda a luz.”
Solto o interruptor. Meus olhos tentam se adaptar à escuridão. O ambiente parece vazio.
Sento-me a uma das mesas, estrategicamente na sombra, observando a entrada. Os minutos passam, e nada acontece. A inquietação cresce dentro de mim. Minha perna balança, meus dedos tamborilam na mesa. Penso em ir embora, mas algo me mantém ali. O desejo por uma resposta.
O som de saltos altos quebra o silêncio. Passos firmes, ritmados, ecoam pelo salão.
Minha respiração acelera.
O trinco da porta se move. Um vento impetuoso entra no local e o cheiro invade o espaço, inconfundível. Fecho os olhos e me deixo envolver pela fragrância que conheço tão bem.
Os passos se aproximam. Meu corpo reage antes mesmo que eu veja sua silhueta surgir diante de mim. Meu coração martela no peito. Meu sangue ferve.
Ela arrasta uma cadeira, o som do metal contra o piso rasga o silêncio. Normalmente, isso me irritaria. Agora, apenas aumenta minha expectativa.
Um tecido desliza pelo chão. Talvez um sobretudo, um jaleco. Não sei ao certo.
Então, sua respiração quente roça meu ouvido.
— O que você veio fazer aqui? — ela sussurra.
— Descobrir quem você é.
Ela ri de leve, um riso provocador.
— Eu sou quem você quiser que eu seja.
Suas mãos hábeis encontram o caminho pela minha calça, libertando-me. O toque é ao mesmo tempo delicado e decidido. Sua pele desliza contra a minha, os movimentos lentos e calculados, despertando em mim algo primal.
Ela se acomoda em meu colo, sua pele quente contra a minha. Os quadris se movem com precisão, desenhando círculos lentos, esfregando-se contra mim, testando minha resistência. O calor dela me enlouquece. Ela morde meu pescoço, uma dor deliciosa que me arranca um gemido.
Meus dedos cravam-se em sua cintura, guiando seus movimentos.
Ela me provoca, encaixando a ponta do meu desejo na entrada de seu corpo, mas sem ceder completamente. Um jogo de tentação que me faz perder a razão.
— Você é real? — murmuro entre dentes.
Ela pressiona o corpo contra mim, seus lábios em meu ouvido.
— Cala a boca e me fode.
Ela desliza sobre a mesa, oferecendo-se. Minha mão percorre suas costas, descendo lentamente. Seguro seus quadris e, sem hesitar, afundo nela.
Um gemido escapole de seus lábios.
Seguro seu cabelo e puxo com firmeza. Ela se arqueia, ofegante, completamente entregue. O ritmo se intensifica, o som de nossos corpos se misturando ao desespero dos gemidos.
A tensão cresce, insuportável, até que ela grita meu nome, estremecendo. Seu prazer me arrasta com ela, e me perco completamente no momento.
Ofegantes, permanecemos imóveis, corpos exaustos, dominados pelo silêncio satisfeito que se instala no refeitório escuro.
Na pouca luz que invade o ambiente, percebo uma tatuagem em seu ombro direito. Uma rosa.
Ela se levanta e sussurra:
— Preciso ir. Não me siga.
E então desaparece.
Fico ali, ainda sentindo seu perfume, ainda sentindo sua pele contra a minha. Quando finalmente volto ao meu quarto, retiro do bolso alguns fios de cabelo que ficaram em minhas mãos. Levo-os ao nariz, respiro fundo e os guardo novamente.
Adormeço.
Um Novo Dia
Amanhece
Acordo lentamente, ainda imerso na névoa quente das lembranças da última noite. Meus sentidos se arrastam entre o sonho e a realidade, e por um instante, hesito. Foi real? Ou apenas mais um devaneio da minha mente inquieta?
Deslizo para fora da cama e caminho até o banheiro. O espelho me encara com olhos cansados e um semblante marcado pelo prazer e pela dúvida. Meus lábios estão ligeiramente inchados. Passo os dedos sobre eles e, como um relâmpago, flashes de dentes cravando-se neles atravessam minha mente.

Desço o olhar. No meu peito, arranhões sutis desenham trilhas sobre a pele. Inclino a cabeça para o lado, avaliando-os. Poderia ter sido eu mesmo? Talvez. Mas algo dentro de mim reluta em aceitar essa explicação.
E então vejo a marca.
No pescoço, ligeiramente avermelhada, uma lembrança física do instante exato em que os lábios dela me tomaram por completo.
Um arrepio percorre minha espinha.
Levo a mão até a marca, pressiono os dedos contra ela. Por mais que tente racionalizar, não consigo conceber uma maneira de tê-la feito em mim mesmo. Isso… isso não pode ter sido apenas um delírio.
Volto para o quarto, o coração acelerado. Enfio a mão no bolso da calça e retiro os fios de cabelo que guardei. Eles brilham sob a luz da manhã. Longe de ser uma ilusão, isso é concreto. Isso é real.
Ou pelo menos, assim quero acreditar.
Mas então, surge a tatuagem.
O pensamento dela invade minha mente, e, junto com ele, uma sensação desconfortável de que estou lembrando de algo que não deveria existir. Fragmentos se embaralham, memórias que parecem brotar do nada. Uma cena desfocada se forma:
Um estúdio de tatuagem.
A luz amarelada, o zumbido da máquina.
A mulher diante de mim, com o rosto borrado, mas a voz clara e inconfundível:
— Escolhe, querido. Esta ou esta?
Olho para os desenhos sobre a mesa. Meu dedo aponta para uma rosa.
Ela sorri.
Ela me beija.
— Então será esta.
A cena se dissolve como fumaça.
Sinto um nó na garganta. Essas memórias… são reais? Ou apenas um truque da minha mente?
Outras imagens emergem, cenas soltas de uma vida que não me lembro de ter vivido. Sempre com aquela mulher. Sempre com a voz que reconheço. Mas o rosto… o rosto segue borrado.
Até que, num lapso, uma lembrança me atinge com força.
Eu a chamo pelo nome.
Raquel.
Minha respiração falha.
Raquel.
A certeza me preenche e me confunde ao mesmo tempo. Estou contente por acreditar que ela existe. Estou confuso porque minha mente está criando memórias que não sei se pertencem a mim.
Mas, no fundo, algo me diz que Raquel sempre esteve aqui.
Eu apenas não sabia.
O Refeitório.
O cheiro de café e pão quente preenche o ambiente enquanto caminho pelo refeitório. O burburinho das conversas matinais se mistura ao tilintar das bandejas, mas meu foco se prende a uma única pessoa.
Eduardo.

Ele está sentado à mesa, a cabeça baixa, mexendo na comida com um desinteresse incomum. O brilho habitual nos olhos dele se apagou. Não precisa dizer nada — está óbvio que está puto comigo.
E com razão.
Eu falhei.
Eu não assisti ao seu grande e maravilhoso espetáculo.
Engulo a culpa enquanto pego minha bandeja. Antes de sair da fila, deslizo um achocolatado extra para mim, subornando discretamente quem serve a comida. Eduardo adora achocolatado. Se há uma mínima chance de redenção, começa por aqui.
Caminho até a mesa e sento-me à frente dele, sem falar nada, sem encará-lo. Apenas me acomodo. Então, sem pressa, escorrego o achocolatado pela mesa até o lado dele.
Ele para de mexer na comida, olha para o pequeno gesto e pergunta, seco:
— O que é isso?
— Um pedido de desculpas ao meu melhor amigo.
Eduardo solta um riso curto, sem humor.
— Vai ter que se esforçar mais. — Ele retruca, sem levantar os olhos da bandeja.
— Amanhã eu trago dois.
Silêncio.
O tempo se arrasta entre nós, preenchido apenas pelo ruído distante do refeitório.
Depois de alguns minutos, tomo fôlego e tento:
— Eu sinto mu…
— Uhum, uhum! — Ele me interrompe, erguendo um dedo, um aviso claro para eu me calar. Mas ainda não me olha.
Então, sua voz emerge, carregada de uma dor profunda:
— Eu só queria você lá, por mim. Eu só queria que alguém que nunca me abandonou estivesse lá. Eu queria que você, a única pessoa que me vê, QUE ME ENXERGA, QUE PERCEBE O SER HUMANO QUE SOU, ESTIVESSE LÁ!
Cada palavra corta fundo, me fazendo sentir o merda da pessoa que fui.
Ele levanta os olhos e me encara.
— Minha família me abandonou, e eu não os culpo. Depois de tudo que aconteceu, era o que se esperava deles. Meus amigos me esqueceram. Até essas pessoas ao nosso redor fingem que eu não existo.
Ele faz uma pausa, como se precisasse reunir forças.
— E eu não terminei.
O olhar dele queima sobre mim.
— Eu vim para cá por sua causa, para não deixar você sozinho nesse lugar. Eu estou aqui com você e por você. E na noite em que, por um instante, eu poderia ser notado, você não estava lá para me apoiar.
A respiração dele acelera. Sua voz treme, mas não de fraqueza.
— Qualquer um, eu entenderia. Mas você? VOCÊ ME DECEPCIONOU.
E então, num movimento brusco, ele empurra a bandeja para o chão. O barulho ressoa pelo refeitório, fazendo algumas cabeças se virarem. Mas Eduardo não se importa.
Ele se levanta e sai.
E eu fico.
Com o peso de cada palavra dele esmagando meu peito.
O Plano
Por três dias, fazemos todas as refeições juntos. Nenhuma palavra trocada, apenas o som dos talheres contra os pratos e o burburinho distante do refeitório. O silêncio entre nós é denso, mas não hostil. É como um campo de batalha após a guerra — destroços por todo lado, mas ainda de pé.
Claro, continuo subornando quem serve a comida para conseguir algo extra para ele. Pequenos gestos para reparar algo muito maior.
Então, no quarto dia, Eduardo quebra o silêncio.
— Estou pronto. — Ele pousa a colher na bandeja e me encara. — Vamos, desembucha. Qual é a sua desculpa?
Engulo em seco.
— Eu sinto muito, Eduardo. — Minha voz falha um pouco. — Sei que a apresentação era muito importante para você, mas… aconteceu um imprevisto.
Ele arqueia uma sobrancelha.
— Que imprevisto?
— Como assim?
— Quero saber o que foi mais importante do que a minha incrível apresentação.
O olhar dele perfura o meu, exigindo uma resposta convincente.
E então, decido contar tudo.
Cada detalhe.
Desde a primeira noite, quando a mulher misteriosa entrou no meu quarto, até o dia da apresentação.
Ele ouve tudo em silêncio, apenas assentindo de vez em quando. Quando termino, Eduardo cruza os braços e solta um suspiro.
— Você deveria ter me contado antes.
— Eu sei. Mas não queria te preocupar.
Ele balança a cabeça, mas o tom de sua voz suaviza um pouco.
— Então temos uma tatuagem, um jaleco e um nome. — Há um brilho em seus olhos agora. — O que vamos fazer?
— Como assim, “o que vamos fazer”?
Um sorriso malicioso surge em seu rosto.
— Sugiro que banquemos os investigadores.
— Investigadores?
— Sim! — Ele se inclina para frente, empolgado. — Vai ser como nos velhos tempos. Eu e você saindo por aí, aprontando.
E então, ele diz com um entusiasmo infantil:
— Eu serei o Holmes, claro. Você, Watson.
Aquele brilho que só ele tem ressurge, e isso me alegra de um jeito que não consigo explicar. Solto um pequeno riso.
— Claro, Holmes. Vamos investigar.
Ele abre um sorriso satisfeito.
— Elementar, meu caro Watson. Elementar.
— Mas… como faremos isso?
— Simples. — Ele se ajeita na cadeira, assumindo um tom conspiratório. — Vamos subornar alguém para ter acesso à sala do psiquiatra. Lá dentro, acessamos o computador. Deve haver registros de todos os internos, tanto da ala masculina quanto da feminina, além dos profissionais que trabalham aqui.
— Mas é provável que tenha senha.
Eduardo revira os olhos.
— Óbvio que tem senha. O computador tem senha e eu tenho o melhor cérebro que já existiu. Dedução é comigo, caro Watson.
Ele fala com tanta altivez que, por um momento, quase acredito que ele realmente é Sherlock Holmes.
Sorrio.
— Então vamos lá.
E a investigação começa.
A Busca
Dois dias depois, após enganarmos um dos vigias, estamos dentro da sala do psiquiatra. De frente para o computador.

Meu coração martela no peito. A adrenalina de estar aqui, de poder ser pego a qualquer momento, mistura-se com a empolgação de fazer isso ao lado de Eduardo.
O computador pede uma senha.
— Vejamos… — Ele murmura, abrindo algumas gavetas com calma, como se tivéssemos todo o tempo do mundo.
Uma delas contém algo inesperado.
— Olha o que temos aqui. — Ele ergue uma arma e a examina com curiosidade. — Poderíamos levar. Talvez seja útil depois.
Arregalo os olhos e sussurro:
— Cê tá maluco?! Guarda isso!
Eduardo revira os olhos, mas devolve a arma ao lugar.
Ele continua vasculhando. Meu nervosismo aumenta a cada segundo.
Então, ele digita algo no teclado.
“Senha inválida.”
Ele me olha com uma expressão de quem diz: Não me julgue.
Tenta outra combinação.
Pimba! O sistema operacional inicia.
Uma risada escapa de nós.
— Estamos dentro.
Meu coração dispara.
Pesquisamos por “Raquel”.
Aparecem cinco registros. Imprimimos os cadastros.
Por uma semana, disfarçados de enfermeiros, de entregadores de cozinheiros, entramos na ala feminina, cada dia de um jeito. O plano é simples: verificar as Raquels, uma por uma.
Mas nenhuma delas tem a tatuagem que vi naquela noite.
A incerteza retorna.
Refazemos a estratégia e buscamos entre as funcionárias.
Nada. Nenhuma pista. Nenhuma Raquel corresponde à mulher misteriosa.
A frustração deveria tomar conta de mim, mas, estranhamente, não me sinto assim. O simples fato de viver essa aventura ao lado de Eduardo já valeu a pena.
Quando voltamos para o nosso quarto, ele suspira e diz:
— Sinto muito, Arthur. Fizemos o que podíamos, mas não encontramos nada.
Dou de ombros.
— Sem problemas. Talvez ainda encontremos novas pistas.
O Conflito
Alguns dias depois, Eduardo me convidada novamente para assistir o seu monólogo. O dia da apresentação chega, e tudo se desenrola como antes. Eduardo invade meu quarto, me acorda e passa o dia ensaiando. Ele recita falas, improvisa gestos, dramatiza cada cena como se já estivesse no palco. Sua empolgação é contagiante. Boa parte do tempo, estou rindo das suas brincadeiras e da forma exagerada como encarna seu monólogo. Já decorei cada linha, cada inflexão de voz, mas é óbvio que ele me quer na primeira fileira do auditório.
À noite, estou lá, sentado na primeira fila, esperando a vez de Eduardo entrar em cena. Durante os intervalos entre as apresentações, ele espreita pela cortina, conferindo a plateia. O auditório está cheio. Nossos olhares se cruzam algumas vezes, e sorrio como um silencioso desejo de boa sorte. Ele retribui com aquele meio sorriso sem mostrar os dentes, ergue ligeiramente uma sobrancelha, os olhos levemente serrados — uma expressão de confiança inabalável.
Tudo corre conforme o planejado.
Até que um aroma familiar me atinge em cheio.
O mundo ao meu redor desfoca.
Uma mulher se aproxima, e tudo se dissolve, exceto ela. Mesmo com a iluminação baixa, vejo seu rosto com nitidez.
Pele clara. Cabelos lisos. Olhar penetrante.
Ela veste um vestido azul. Algo nele me parece familiar. Assim como ela.
Minha mente é invadida por flashes de um passado que parece irreal.
É como se ela estivesse fabricando essas memórias.
Ouço minha própria voz, distante, como se tivesse algum delay:
Raquel.
Sorrisos compartilhados. Riso fácil, como um casal apaixonado.
Eu e ela, pedalando juntos, o vento cortando nossos rostos.
Eu e ela, no dia do seu aniversário.
Ela se senta ao meu lado esquerdo, sem me olhar.
Meu coração bate tão forte que sinto no fundo da garganta.
O que é isso? Amor? Paixão? Desejo?
Uma mistura explosiva de sentimentos me domina.
Quero olhar para ela. Mas não quero.
Então, sem aviso, sua mão pousa sobre minha coxa e aperta de leve.
Um choque percorre minha espinha.
Novos flashbacks.
Nossos corpos se entrelaçando nas noites em que nos entregamos ao prazer.
Ela se inclina e sussurra no meu ouvido:
— Estou sem calcinha e te espero no banheiro feminino. Não demore.
Então ela se levanta e sai.
Meu sangue ferve.
Eduardo vai se apresentar daqui a pouco.
Se eu sair agora, ele vai me odiar.
Mas essa mulher tem respostas sobre mim.
A dúvida me dilacera.
Então Eduardo entra no palco.
Ele começa.
Mas eu não consigo ouvir nada.
Minha mente está em chamas.
Minhas pernas inquietas.
E, no instante seguinte, eu tomo a decisão que pode me assombrar pelo resto da vida.
Levanto-me.
Começo a caminhar.
Sinto os olhos de Eduardo me acompanhando.
Ele pausa o monólogo por um breve segundo.
Seus olhos encontram os meus.
Os meus dizem: Preciso ir. Sinto muito.
Os dele respondem: Você sabe exatamente o que está fazendo.
Mas eu continuo andando. Até sair do auditório. Então encosto-me com as costas na parede, fecho os olhos, levanto a cabeça e suspiro.
Penso: O que estou fazendo? ainda posso retornar.
Sem volta
Não há mais volta. Minha escolha está feita. Preciso saber se ela é real.
Aperto o passo em direção ao banheiro feminino.

Ao entrar, fecho a porta atrás de mim.
A iluminação está baixa.
O perfume dela impregna o ar.
Ouço o som suave de uma cabine se abrindo.
Então ela surge.
Raquel.
Real.
Não pode ser uma ilusão.
Ela me encara, a cabeça levemente inclinada para baixo, os olhos carregados de desejo, e diz:
— Você demorou.
Aproxima-se lentamente e me beija. Um arrepio percorre meu corpo inteiro, e meus pelos se eriçam. Minhas mãos se apressam, deslizando por suas costas até encontrar o zíper do vestido. Puxo-o para baixo. O som do zíper me excita ainda mais.
De repente, o trinco se mexe.
Alguém tenta entrar.
Olhamos um para o outro. Ela leva um dedo até minha boca e sussurra, num tom quase pecaminoso:
— Shhh…
O trinco é forçado.
TOC! TOC! TOC!
Uma voz do outro lado resmunga:
— Deve estar em manutenção.
Os passos se afastam.
Soltamos um riso abafado, íntimo, como se nos conhecêssemos há muito tempo. Recomeçamos. O beijo se intensifica. Quanto mais seus lábios se fundem aos meus, mais imagens tomam conta da minha mente—memórias que não sei se são minhas.
Então, ela se ajoelha.
Meu peito sobe e desce, meu coração dispara.
Fecho os olhos, sabendo o que virá a seguir.
— Ahhh… Ahhhh…
Minha cabeça pende para trás, enquanto ondas de prazer me arrebatam. Seguro seus cabelos, guiando seus movimentos.
E então, uma certeza inegável me invade.
Essa não é a primeira vez.
— Caralho… Não para…
Quando finalmente me deixa à beira do abismo, ela se ergue, lentamente, o olhar preso ao meu. Seguro-a pela cintura, puxo-a para o lado. Seu vestido desliza até o chão. Ela vira-se, apoia as mãos na parede, inclina o quadril para trás, oferecendo-se para mim.
Minha boca percorre suas costas, descendo até onde ela mais me deseja. Suas pernas se abrem levemente, e eu roço contra sua pele quente.
Ela geme.
A cada investida, memórias explodem dentro de mim.
Eu deveria questionar, mas não quero.
O prazer nos consome. O som dos nossos corpos ecoa pelo banheiro. Ela geme meu nome, implora por mais.
E então, no ápice, sem pensar, sem entender, apenas sentindo, eu sussurro:
— Eu te amo.
Ela estremece, geme mais alto, e, juntos, atravessamos a fronteira entre o desejo e algo maior.
O silêncio que se segue não é vazio.
É preenchido por uma paz desconhecida.
Ela vira-se para mim, e seus olhos, antes repletos de luxúria, agora transbordam algo mais profundo. Admiração? Satisfação?
Ou seria amor?
Ela toca meu rosto com a ponta dos dedos e murmura:
— Preciso ir. Nos veremos em breve.
E se vai.
Fico ali, esperando um pouco antes de sair. Retorno ao meu quarto, mas, dessa vez, não sou atormentado pelo desejo ou pela dúvida.
Apenas aceito.
As lembranças, reais ou não, são reais dentro de mim.
Adormeço sem me preocupar em procurar provas.
Dessa vez, estou em paz.
O Mistério
Acordo me sentindo leve. Faz tempo que não tenho uma noite de sono tão tranquila. O descanso foi profundo, restaurador. Vou ao banheiro, olho meu reflexo no espelho e, pela primeira vez em muito tempo, não vejo angústia nem confusão. Apenas serenidade. Estou vivo. Quero viver. Uma satisfação pura e intensa pulsa dentro de mim.
Saio do quarto, atravesso os corredores do hospital em direção ao refeitório. Estou pronto para encarar Eduardo. No fundo, sei que ele vai entender meus motivos. Ele ficará feliz por mim. Desta vez, estou realmente em paz. As memórias, sejam verdadeiras ou não, são reais para mim. E elas me trazem uma tranquilidade imensurável.
O aroma da comida fresca toma o ar assim que entro no refeitório. O burburinho das conversas, o som das risadas e o tilintar dos talheres criam uma sinfonia acolhedora. Respiro fundo, apreciando aquele momento simples, mas tão satisfatório. Meus olhos buscam Eduardo no lugar onde sempre nos sentamos. Ele não está lá.
Pego minha bandeja, escolho minha refeição e me sento, esperando que ele apareça. Os minutos passam. Olho para o relógio na parede. O ponteiro avança, implacável. O som do refeitório desaparece ao meu redor. Tudo o que escuto é o tic-tac do relógio.
Tick. Tack. Tick. Tack.

Ele deve estar se sentindo mal. Sigo com minha refeição. O tempo passa, mas nenhum sinal dele. Espero um pouco mais. Talvez eu devesse ir ao seu quarto, ver como ele está. Mas hesito. Por quê? Algo dentro de mim alerta que não vou gostar do que vou descobrir.
O refeitório esvazia. Um enfermeiro se aproxima e diz:
— Precisamos que você vá para a sua atividade.
Levanto-me e sigo para a sala, ainda esperando encontrá-lo lá.
Nada.
Nenhum sinal de Eduardo. Meu coração bate mais rápido. Começo a perguntar para os outros pacientes:
— Você viu Eduardo Almeida?
As respostas me atingem como um soco:
— Não sei quem é. — Nunca ouvi esse nome.
Sinto um frio subir pela espinha.
— Mas ele se apresentou ontem no festival. Fez um monólogo incrível!
Alguém franze a testa.
— Não houve monólogo ontem.
— Eu nunca vi nenhum Eduardo aqui.
Aflito, busco os enfermeiros. Eles trocam olhares confusos, negam saber de qualquer Eduardo Almeida. Meu peito aperta. A realidade se desmancha ao meu redor.
— Isso é um erro! Ele está internado aqui!
Levanto a voz. Meu tom se torna desesperado.
— Preciso ir ao quarto dele!
Um dos enfermeiros tenta me acalmar.
— Não há nenhum Eduardo aqui.
— Deixem-me ir até o quarto dele! Eu sei onde fica!
A troca de olhares entre os enfermeiros é silenciosa, carregada de significado. Um deles suspira.
— Certo. Mostre-nos.
A cada passo pelo corredor, minha inquietação cresce. Eles me acompanham com calma, como se já soubessem o que vai acontecer. Paro em frente à porta.
— É aqui.
— Tem certeza?
Bato na porta. Chamo por Eduardo.
Passos se aproximam. Mas o som não é o dele.
A porta se abre, e um homem aparece. Ele tem a barba grande, o olhar vazio, o semblante amargurado.
— Aqui não há nenhum Eduardo.
O sangue lateja em minhas têmplas.
— Claro que há!
Empurro o homem e entro. Os enfermeiros tentam me conter.
— Calma, rapaz.
O homem pede que eu saia, mas não escuto. Revirando o quarto, busco qualquer prova de que Eduardo esteve ali. Nada. Nenhuma pista.
O enfermeiro toca meu braço.
— Hora de ir.
Reajo no instinto, puxo meu braço com força. O outro enfermeiro se aproxima, pronto para intervir. Meu coração martela no peito. Desfiro um soco. Ele cambaleia. O outro avança. Tento resistir, mas eles são mais fortes. Sou imobilizado e arrastado pelo corredor.
— ME SOLTEM! PRECISO ENCONTRÁ-LO! EDUARDO!
Meus gritos reverberam pelo hospital. Rosto desconhecidos me observam.
Me jogam na cama. Me debato, urro, esperneio. Alguém segura minha cabeça. Outro enfermeiro chega com uma seringa. A agulha fura minha pele.
Aos poucos, os sons se dissolvem. O mundo se desfaz.
A última coisa que vejo antes da escuridão tomar conta é a porta do quarto se fechando.
E o nome dele escorrendo dos meus lábios, fraco, morrendo no vazio.
— Eduardo…
A Verdade
Dois dias se passaram, e a medicação continua me deixando em um estado de calma artificial. Banheiro, refeitório, atividades, TV… Tudo acontece ao meu redor, mas é como se eu estivesse distante. Meu corpo executa os movimentos, mas minha mente não os acompanha. Há um vazio. Um vazio que só o Eduardo poderia preencher.
Decido não perguntar mais nada sobre ele. Mas algo não está certo. Tenho a sensação de que estão tentando me manipular, conspirando contra mim. Eles querem me manter aqui. Por quê? Ainda não sei. Mas tenho certeza absoluta de que minhas memórias com Eduardo são reais. Nos conhecemos na adolescência. Nos tornamos inseparáveis.
— Arthur, como você está? — A voz do psiquiatra me traz de volta.
Demoro a reagir. Minha mente está lenta, afundada nesse torpor induzido. Forço o olhar na direção da voz e, aos poucos, sua imagem entra em foco. Somente agora percebo que estou em seu consultório.
— Estou bem. Obrigado por perguntar. — minto.
Ele me observa por um instante, depois pergunta:
— Arthur, como está o Eduardo?
O tom é sincero, mas a pergunta me pega desprevenido.
— Você conhece o Eduardo?
— Eduardo Almeida? Sim, conheço.
Meu peito aperta. A conversa me interessa, mas, ao mesmo tempo, desconfio. Qual a intenção dele? Para onde está tentando me levar?
— Quando foi a última vez que você o viu?
Hesito por um momento. Quero saber até onde isso vai.
— Acho que há dois ou três dias. Minha mente ainda está um pouco lenta…
— Certo. Onde você o viu pela última vez?
— No teatro. Ele estava no palco, iniciando seu monólogo.
— O que aconteceu depois?
Engulo em seco. Escolho minhas palavras com cuidado.
— Saí antes que ele chegasse na metade da apresentação.
O psiquiatra assente levemente e se inclina para frente. Seu olhar se torna mais intenso.
— Arthur, preciso que você preste bastante atenção… e se mantenha o mais calmo possível.
Ele me encara firmemente, esperando por algum sinal. Meu olhar, no entanto, está fixo em um papel sobre sua mesa, imóvel, sem piscar. Então, ele se levanta, caminha até a porta e a abre.
O aroma que invade a sala é familiar.
É ela. Raquel.
— Oi, Arthur. — Sua voz é suave, acolhedora.
Meu coração dispara. Levanto-me de repente, arrastando a cadeira para trás, o barulho metálico ecoando pelo consultório. Uma enxurrada de emoções confusas e contraditórias toma conta de mim.
— Você está vendo o que estou vendo, doutor? Está vendo? — Minha voz treme.
— Sim, Arthur. Esta é Raquel. Acredito que vocês já se conhecem.
Engulo em seco.
— Sim… Eu tenho lembranças recentes… e outras como se tivéssemos vivido uma vida inteira.
No instante em que as palavras saem da minha boca, sou atingido por uma avalanche de memórias.
O primeiro beijo. A primeira vez que ficamos juntos. Passeios no cinema, tardes no shopping, piqueniques ao pôr do sol. Discussões intensas, reconciliações apaixonadas, viagens inesquecíveis. Tudo tão vívido, tão real.
Mas, de repente, tudo se apaga. Como se uma barreira invisível surgisse, bloqueando qualquer acesso ao restante das lembranças. Uma dor profunda se espalha pelo meu peito. Meu corpo se encolhe instintivamente. Cerro os punhos ao lado da cabeça e me contorço.
— Arthur, você está bem? — A voz do psiquiatra soa distante.
— Está tudo preto. Eu… eu não consigo lembrar.
— Calma, Arthur. Estamos aqui.
Demoro alguns minutos para me recuperar. Quando finalmente ergo a cabeça, vejo Raquel sentada na cadeira ao meu lado. O psiquiatra, do outro lado da mesa, rompe o silêncio:
— Arthur, precisamos continuar nossa conversa sobre o Eduardo.
Minhas mãos ainda tremem, mas antes que eu possa responder, Raquel se movimenta ao meu lado. Ela pega o celular e o coloca em minhas mãos.
A tela se ilumina. Fotos nossas.
Passo por cada uma delas, reconhecendo os momentos, as expressões, os lugares. São idênticas às minhas lembranças. Uma onda de emoção me atinge, e lágrimas quentes começam a rolar pelo meu rosto. Mas não são de dor. São de alívio. De alegria.
E então, vejo.
Nossa foto de noivado.
Levanto os olhos para Raquel, atordoado. Ela me encara com um brilho no olhar, um sorriso vitorioso, como alguém que acaba de recuperar um tesouro perdido.
— Você é real… — murmuro.
Ela apenas sorri.
O psiquiatra e Raquel me explicam que ela vinha para visitas íntimas. Que, de alguma forma, acreditavam que sua presença poderia me ajudar a lembrar.
E parece que funcionou.
Continuo deslizando as fotos. E então, vejo Eduardo.
Ele está lá, ao nosso lado, no noivado. Seu abraço brincalhão envolve meu pescoço, apertando-me com força, como sempre fazia. Ele é mais alto do que eu, e seu jeito descontraído transborda pela imagem. E ali, naquele instante congelado no tempo, percebo.
Ele também é real.
Uma sensação de alívio me toma por completo. Meus olhos brilham enquanto viro a tela para o psiquiatra.
— Olha… Ele é real. — Um sorriso tímido se desenha em meus lábios. O medo de que fosse apenas uma ilusão começa a se dissipar.
Deslizo para a próxima mídia. Um vídeo.
A voz animada de Raquel surge ao fundo. Ela está gravando. Na tela, Eduardo e eu corremos em direção ao píer e, sem hesitar, pulamos juntos na água.
Uma risada escapa de mim. E então gargalho, alto, espontâneo.
Passo para outro vídeo. Estamos na tradicional pelada de domingo. E, claro, ele continua sendo o perna de pau que se achava um craque.
O próximo vídeo. Meu quarto. Minha cama. Eduardo surge saltando sobre o colchão, sua voz vibrante ecoando pelo cômodo:
— Acorda, vagabundo! Isso é hora de estar dormindo?
— Uhhmm… Me deixa em paz… Hoje é sábado.
— Exatamente! Você precisa se preparar para a minha apresentação magnífica!
A gravação avança em cortes. Lá está ele, ensaiando as falas com seu entusiasmo inigualável. E eu, sentado, assistindo, me deleitando com aquela apresentação particular. Meus olhos brilham de admiração. Eu sempre sorria quando ele estava por perto. Sua alegria era contagiante.
Outro vídeo. Desta vez, sou eu quem está gravando. Reconheço minha própria voz no fundo da filmagem.
Eduardo está em um palco. Seu monólogo, impecável. Eu acompanho cada verso, cada linha, cada entonação. Conheço seus gestos. Conheço sua voz. Nossas vozes se misturam na gravação.
O vídeo termina com o público de pé, aplaudindo entre lágrimas. Ele se inclina, grato, ovacionado. Ele foi incrível.
Meu peito se enche de uma sensação indescritível. Olho para Raquel, e então digo:
— Eu estava lá.
Mas algo me inquieta.
Eles não reagem.
Seus olhos permanecem fixos em mim, atentos a cada uma de minhas reações.
Me recomponho, tentando ignorar o desconforto. O psiquiatra rompe o silêncio.
— Arthur, precisamos conversar sobre o Eduardo.
O clima está pesado. Um peso sufocante que me assusta. Que me apavora.
Olho fixamente para o psiquiatra.
O silêncio que se instala é denso, quase palpável. Então, ele move a mão suavemente sobre o teclado. A tela de seu computador é espelhada na TV do consultório.
E ali está.
Uma manchete de dois anos atrás.
JOVEM É ENCONTRADO MORTO EM SEU APARTAMENTO.

Meu estômago se revira.
Isso não vai acabar bem.
— O que é isso? — Minha voz sai cortante, enquanto me levanto abruptamente da cadeira.
— Por favor… parem com isso.
A confusão me toma de assalto. Me encolho, pressiono a cabeça com força. Fecho os olhos, tentando expulsar o caos que se forma dentro de mim.
— Parem… PAREM! PAAAREM!
Mas é tarde demais.
Flashs invadem minha mente. Recortes daquela mesma matéria explodem em minha consciência, como se estivessem sendo projetados dentro de mim.
— NÃO! NÃO! NÃO!
A dor é insuportável. Minha mente luta para rejeitar as lembranças, mas elas se infiltram, se arrastam, se cravam em mim como lâminas afiadas.
Num impulso descontrolado, invisto contra o computador. Tento desligá-lo. Preciso fazer parar aquilo. Mas as mãos deles me seguram. No desespero, arrasto o aparelho pela mesa e o jogo ao chão.
Raquel e o psiquiatra insistem para que eu me acalme.
Mas algo desperta dentro de mim.
Minha mão se move sozinha para a gaveta. Meus dedos encontram o frio do metal.
A arma agora está comigo.
— AFASTEM-SE!
Os dois congelam.
— Arthur, por favor, fica calmo… — Raquel. Sua voz treme, mas é carregada de um amor que quase posso tocar.
O psiquiatra mostrando as mãos e com a voz branda.
— Não precisa disso. Guarda essa arma. Vamos conversar, com calma.
Meus pensamentos estão em chamas.
— Por que vocês querem me convencer disso? O que vocês estão tramando?
Minha respiração está ofegante. Meu coração, um tambor descompassado.
Corro até a porta. Tranco antes que os enfermeiros possam entrar. Do outro lado, eles forçam a maçaneta. Batem. Gritam.
O pânico cresce dentro de mim.
— PAREM!
O psiquiatra grita.
— Tudo sob controle. Deixem-nos a sós.
O silêncio volta a dominar a sala.
Aperto a arma com mais força.
— Só vamos sair daqui quando vocês me disserem… — minha voz falha. Meus olhos queimam. — Por que estão fazendo isso comigo?
Raquel diz, firme, mas com a voz trêmula:
— Não fizemos nada.
Eu solto uma risada seca, sem humor.
— Fizeram sim.
Minha respiração acelera. Minha cabeça lateja.
— Essa matéria não é real. Vocês a criaram para me afastar do Eduardo.
A dor aperta meu peito como um punho fechado.
Flashs voltam. Rápidos. Cortantes.
Eu sei o que está escrito. Cada linha. Cada palavra.
Sei também das reportagens na TV.
Não. Eu não quero lembrar.
Agarro minha cabeça com força, tentando bloquear as imagens, tentando afastar a verdade que me arranha por dentro.
E então…
Uma voz.
Eduardo.
— Eles querem nos separar.
Abro os olhos.
E ele está aqui.
Na sala.
Furioso.
Seus olhos faiscam enquanto encara Raquel e o psiquiatra com ódio.
Raquel percebe meu silêncio, meu olhar fixo no vazio.
— Arthur? — sua voz está cheia de medo. — O que está acontecendo? Fala comigo, por favor.
Eu respiro fundo. O ar entra e sai ra sgado.
Espero alguns segundos antes de responder.
— Ele está aqui.
Raquel troca um olhar aflito com o psiquiatra.
— Quem está aqui?
— Eduardo.
— Onde?
— Perto da mesa.
Os dois olham para o mesmo ponto.
— Não conseguimos vê-lo.
Mas eu consigo.
E Eduardo não para de falar.
Ele sussurra. Ele insiste.
Ele quer que eu atire.
Minha mente está um caos.
Então, num ato de desespero, ergo a cabeça. Meu rosto se contorce em dor. Meus olhos brilham com o início de um choro sufocado.
Devagar, coloco o cano da arma sob meu queixo. Quero acabar com este sofrimento.
E sussurro:
— Para de falar, Eduardo… por favor…
E ele se cala.
Raquel e o psiquiatra congelam.
O doutor dá um passo à frente, sua voz baixa, cuidadosa.
— Arthur, antes de fazer isso, me escute.
Não respondo.
— Você trancou a porta, certo?
Silêncio.
— E disse que Eduardo está aqui.
Mais silêncio.
O tempo se arrasta.
Então…
— Se a porta está trancada… e Eduardo está aqui… como ele entrou?

A pergunta paira no ar como uma lâmina suspensa.
A sala inteira é engolida pelo silêncio.
Meu peito sobe e desce rapidamente.
Minhas mãos tremem.
Minhas lágrimas queimam meu rosto.
Então eu digo: — Eduardo, você pode ir, agora…
Uma brisa toca o meu rosto, e uma paz começa a invadir o meu peito. Eduardo se foi, já faz dois anos, mas eu o mantive aqui, comigo. A dor de admitir que eu não o veria mais era insuportável, e minha mente encontrou uma maneira de mantê-lo por perto, trazendo assim uma confusão dentro de mim.
Solto a arma.
Ela cai no chão com um som surdo no carpete.
Meus joelhos cedem.
E então, Raquel me envolve nos braços.
Ela me segura como se pudesse me impedir de desmoronar.
Ela massageia meu peito, sussurrando palavras que mal consigo ouvir.
Meu corpo inteiro treme quando digo, entre soluços:
— Ele se foi, Raquel… Ele se foi…
E minha dor preenche toda a sala.
Raquel me aperta mais forte.
— Eu sinto muito, querido… sinto muito…
E naquele momento, tudo o que resta é o meu pranto.
O Monólogo: Adeus!
Duas semanas depois, recebo alta.
Raquel dirige em silêncio, atenta à estrada e com uma sensação de conquista, de retorno.
Estou ao seu lado, no banco do passageiro, olhando para a paisagem que passa.
Sereno.
Estou bem.
Estamos indo para casa. Estamos indo de volta para casa.
Mas antes, fazemos uma parada.
O vento sopra leve quando descemos do carro.
Diante de mim, a lápide de Eduardo.
Fico ali, parado.
Uma rosa em minha mão.
O tempo desacelera.
O silêncio se alonga.
Então, fecho os olhos.
E começo a recitar.
Cada palavra moldada pela sua voz, pela memória que ainda vive em mim.

— Há tempo de plantar, há tempo de colher.
Há tempo de abraçar, há tempo de se afastar de abraços.
Há tempo de viver e há tempo de morrer.
Tudo é passageiro. Transitório. Temporal. Efêmero. Contingente. Momentâneo.
Se sabemos disso, por que é tão difícil aceitar a perda?
Aceitar o amor que se rompeu.
Aceitar a derrota que nos marca.
Aceitar que alguém partiu.
Talvez… porque não sejamos tão racionais quanto acreditamos ser.
Passamos a vida tentando justificar nossas crenças, mas esquecemos que acreditar vem antes de justificar.
Nossos sentimentos nos precedem.
Nossos desejos, nossas vontades, nossos ódios, nossos amores, nos antecedem.
Nos apaixonamos antes de entender o porquê.
Odiamos antes de racionalizar a razão.
E em tudo isso sobrepomos um verniz de sabedoria.
E por ser visceral, não é fácil deixar ir.
Não é fácil abrir mão.
Não é simples dizer adeus.
A razão sussurra que faz parte da vida, mas os sentimentos gritam em protesto.
Viver talvez seja isso:
Aproveitar o tempo de abraçar e abraçar com toda a intensidade.
Honrar o tempo de viver, com sacralidade.
E, quando chegar a hora de se afastar, aceitar com a mesma visceralidade.
Porque viver também é aprender a dizer adeus.
E seguir em frente.
Dizer adeus para o que passou, para o que terminou, para o que não é mais.
Viver é encontro, desencontro e, às vezes, reencontro, mas nunca permanência.
Nunca se permanece o que éramos, nem o que somos. Estamos sempre nos tornando um novo ser.
A linda canção já dizia: “nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia”.
Precisamos deixar algo ir,
para algo substituir.
Pois quem quer ficar, fica. Quem deseja partir, não está mais aqui.
Então viva tudo o que você puder viver.
E quando eu partir… deixe-me ir.
levarei um pouco de você e deixar-te-ei um pedaço de mim.